Segunda-feira, 06 de Outubro de 2014
“O ARTISTA É O INIMIGO”
Sobe ao palco do Coliseu de Lisboa na segunda-feira para um concerto muito aguardado, mas questiona-se se terá alguém a vê-lo.As dúvidas, as farpas e os anseios: eis Morrissey sem freio
ENTREVISTA MÁRIO RUI VIEIRA
Tornou-se uma lenda com os Smiths e manteve o estatuto num percurso a solo que tem em “World Peace Is None of Your Business” a mais recente paragem. Em entrevista ao Expresso, Morrissey, vegetariano dos quatro costados, fala do seu amor pelos animais, explica o repúdio pela família real britânica e recorda dois episódios menos felizes: um no aeroporto de Los Angeles e outro vivido à porta de um restaurante no Porto.
Por que razão “World Peace Is None of Your Business” foi retirado das lojas e serviços de streaming?
Quando o álbum foi editado, queixei-me ao presidente da editora sobre o facto de não ter havido promoção, de não ter havido publicidade impressa nem anúncios na televisão, mas ele é tão egocêntrico que ninguém lhe pode dizer que está errado. Despediu-me da editora. No entanto, não se apercebeu de que não tinha sido assinado um acordo discográfico, portanto o álbum pertence-me inteiramente. A Harvest não detinha direitos legais para vender o álbum e não tiveram outra opção que não a de o remover de todas as lojas. Estará disponível por uma nova editora em breve. Como vê, é um negócio das trevas.
Porque escolheu Lisboa para ser a cidade onde levará estas novas canções pela primeira vez ao palco?
Não houve uma razão científica. Não controlo como as coisas vão acontecer. Será que as pessoas vão aparecer? Podem nem aparecer!
Tocou pela última vez em Portugal há oito anos. Que memórias guarda de Portugal?
Não vai gostar do que vou dizer, mas a minha única recordação é horrível. Estávamos no Porto e vimos um borrego esfolado na janela de um restaurante. Ficámos em choque pelo menos durante 40 minutos. Penso que nunca vi nada tão horripilante. E era para atrair as pessoas para o restaurante! Foi como ver uma criança esfolada.
Diz que nunca para de ouvir música. Ouviu algo interessante recentemente?
Não conheço a música dos topes porque se tornou inaudível pelo menos há dez anos e só existe para que as editoras mostrem as suas capacidades de marketing. Os jovens desligaram-se da música devido a programas de não-talentos como o “X-Factory” ou o “Idiot Idol”. Os zombies tomaram conta disto. É um pouco como o “Dawn of the Dead” [filme de zombies de 1978]. Tenho uma amiga que é DJ na BBC, em Londres, e só pode escolher duas canções para tocar no seu próprio programa. O resto da playlist é-lhe dado pela BBC. A geração estupidificada está firme no controlo de praticamente tudo, neste momento. Se o teu cérebro funciona, tens de sair do caminho.
Em “World Peace Is None of Your Business” canta “de cada vez que votamos, apoiamos o processo”. Qual é e onde está, a seu ver, a alternativa ao sistema democrático?
O sistema democrático não existe. É um mito. É inocência ideológica acreditar que a democracia existe onde quer que seja. Não é democrático estarmos restringidos, na nossa escolha, pelo voto, a dois grandes partidos políticos, ambos com os mesmos interesses e controlados pelas mesmas corporações. Vivemos sob ameaça, todos temos medo, estamos todos em dívida, nenhum de nós tem voz e há tantas regras sociais que cada dia das nossas vidas é organizado de forma a evitar sofrimento. A política tem tudo a ver com dinheiro e nada a ver com o bem-estar dos seres humanos.
‘I’m Not a Man’ e ‘The Bullfighter Dies’ são canções bastante críticas quanto à forma como o homem trata os animais. Pensa que, apesar de tudo, houve uma evolução na direção certa desde que se tornou vegetariano?
Tem havido um progresso incrível, mas as pessoas que detestam animais estão a dar luta. No início deste ano, foi divulgado que o príncipe William disparou contra 78 pássaros, portanto, como pode ver, aqueles de nós que não matam têm uma batalha em mãos. O príncipe William, claro, é um idiota. Penso que isso é do conhecimento geral.
Há muitas fotografias suas com gatos e cães e muitas perguntas sobre a sua ligação aos animais: tem animais de estimação, dá-lhes carne a comer... Usa sequer a expressão “animal de estimação”?
Os cães e os gatos não são criação minha e não posso alterar o facto de os seus organismos sofrerem seriamente se não lhes dermos carne. É horrível, mas é assim que funcionam. Há comida de gato vegetariana mas não resulta e não é bom para o gato. Não podes dar tostas ao teu gato. Tive dois gatos que viveram até aos 20 e tal anos e só comiam comida de lata nojentamente barata... Só Deus sabe o que continha — provavelmente outro gato. Não comiam mais nada. Não podia insistir para eles comerem ameixas.
Arrepende-se de não ter escrito sobre alguma coisa na sua autobiografia?
Sim. Fui detido no serviço de imigração do aeroporto de Los Angeles. Atiraram-me para uma cela durante duas horas e mantiveram-me detido durante quatro. Não tive sequer direito a um copo de água. Prenderam-me numa sala com vietnamitas que chegaram de barco. Estavam a gozar comigo. Revistaram os meus pertences e tiraram-me todo o dinheiro. Obviamente, fizeram algo ilegal. Depois, libertaram-me. A ideia de que a polícia sabe algo que nós não sabemos ou que é apaixonada pela lei, é um absurdo. São impelidos por um desejo de importância e a maior parte deles não passa de bandidos protegidos pelo sistema judicial. Sabem que podem fazer o que quiserem com as pessoas e que nunca serão questionados por isso.
Cancelou uma digressão nos Estados Unidos devido a uma infeção respiratória e disse, recentemente, que esteve “em tantos hospitais ultimamente que nem faz sentido sair”. Como vai a sua saúde?
Passei um mau bocado e penso que isso se nota nas fotografias mais recentes! Mas ainda não estou morto e darei tudo o que puder nesta nova digressão. Fiz quatro despistes do cancro e tudo estava bem, mas ouvimos a palavra cancro e assumimos imediatamente que o nosso tempo está a acabar. Se estiver, então está. Se não estiver, então não está. Da forma como as coisas estão hoje, posso dizer que o tempo me pertence.
Muitos artistas apontam-no como grande referência. Já algum artista ou banda verbalizou isso e o fez pensar “não digas isso porque eu detesto a tua música com todas as minhas forças”?
Céus, claro que sim! Mas é errado julgar uma pessoa pela música que faz. Encontrei a Joni Mitchell algumas vezes e adorava os álbuns “The Hissing of Summer Laws”, “Hejira” e “Don Juan’s Reckless Daughter”. Mas ela foi muito fria e não estava muito interessada em ser simpática. A cantora Alanis Morissette aproximou-se da Joni num aeroporto e disse-lhe “gostava de lhe dizer quanto adoro a sua música” e ela respondeu “o sentimento não é mútuo”! Não podes adivinhar. Conheci muitas pessoas cuja música não suporto e que acabaram por se revelar terrivelmente simpáticas.
Numa entrevista recente, Chrissie Hynde [dos Pretenders] disse que o Morrissey é “uma das pessoas mais divertidas” que conhece. Que tipo de coisas normalmente o faz rir?
A Chrissie faz-me rir porque não se controla. É uma imitadora excelente e não se preocupa com quem possa estar a ouvi-la. Tudo o que dizemos se resume às nossas capacidades de descrição porque estamos sempre a descrever algo... Como nos sentimos, o que acabámos de ver, como dormimos na noite anterior... Portanto, as pessoas mais divertidas, quanto a mim, são aquelas que têm capacidades incríveis de dramatizar as descrições. Num restaurante, a Chrissie dirá: “Garçon! Uma garrafa do seu champanhe mais mediano, por favor...” e deixará as coisas assim. A simples coragem de dizer algo inesperado faz-me rir bem alto.
Que conclusões retira do resultado do referendo na Escócia? Algo mudará no Reino Unido?
Claro que não. A Escócia vai continuar a ser o que é — um apêndice de Westminster, útil devido ao petróleo e para a família real ir caçar veados. Não assisti a uma única reportagem noticiosa da BBC que encorajasse o voto na independência. Todas impunham o medo de Deus aos escoceses que planeassem votar contra o domínio do Reino Unido.Em que ponto da sua vida deixou de ver a monarquia britânica como o conto de fadas que a maior parte das pessoas vê? Não penso que as pessoas continuem a vê-la como um conto de fadas. Era assim em 1948. Com o advento da internet, os ditadores já não podem controlar o que o público pensa ter testemunhado. A realidade mudou. As pessoas agora, finalmente, sabem que o apelido da rainha não é Windsor, que o seu apelido é, na verdade, alemão... Um facto escondido durante a Segunda Guerra Mundial. Ali tínhamos rapazes britânicos a morrer no campo de batalha contra a Alemanha e, no entanto, a rainha de Inglaterra casava-se com um cepo alemão! Em 2014, a família real britânica existe apenas para entreter os elementos da sociedade que não pensam. Pessoas sensatas não suportam a imagem da rainha e a sua família disfuncional. A ideia de que Kate Middleton possa ser interessante para alguém com um cérebro totalmente funcional faz-me questionar a sua sanidade.
Os seus objetivos, no que diz respeito à sua carreira musical, estão hoje muito longe daqueles que tinha quando começou a fazer música?
Os meus objetivos nunca mudaram. Anseio que ‘Istanbul’, ‘Kiss Me a Lot’, ‘Earth is the Loneliest Planet’ e ‘The Bullfighter Dies’ passem na rádio e consigam um lugar nas tabelas, mas isso foi há muito destruído por Steve Barnett na Capitol Records. O artista é o inimigo.
JORNAL EXPRESSO de 4 de outubro de 2014